domingo, 6 de setembro de 2020

Amores líquidos

Salvador Dali - Galatea das Esferas, 1952 

 Não dizer nada

é  mais que qualquer palavra.

Feito o som que ninguém repara

mas que mexe e embrulha a vida, 

nem sempre para presente.

O silêncio desvela o descaso,

a ausência disfarçada de compromisso que 

inunda o coração com uma alegria impessoal,

um sentir descartável, feito um trapo

no fundo de uma gaveta qualquer. 

Você realmente esteve aqui, dentro,

em algum momento? Não sei.

Você caminha em círculos e ainda assim se perde.

Senti saudade, senti falta. Só não senti medo.

Talvez, numa hora ou outra, 

eu tenha sentido um vazio porque

eu fiz muita falta para mim mesma.

Nesse descompasso por onde me guiou,

eu estive longe demais para 

perceber que não haveria nós - 

eu dancei a sós  essa canção que 

cantava uma história 

mal contada, inacabada.

De você restou apenas os cacos

de um coração despedaçado,

onde um dia coube o que eu quis que fosse amor.

Não tem amor sem entrega, 

sem partilha, sem escuta

sem lugar para dois.

Embarco num mundo que eu possa fazer parte

e expanda meu universo particular.

Me recuso a viver um afeto líquido que, 

feito a água de um rio,

contorna as pedras no caminho. 

Porém, pelo medo de desaguar no mar, 

prefere se afogar. 

Sujeito oculto

Obras de Banksy estarão em Lisboa entre junho e outubro. É mais uma  exposição não autorizada pelo artista – Observador
Banksy - street art in Boston, 2010.

Um fantoche
das mídias, das redes.
O que restou de quem somos?
Algoritimos, robôs, cifrões
Um like, mais um follow
Nada que some
Só o que consome. 

Sem rosto, sem gosto, 
em uma sala pintada de cinza, vazia.
Quem vejo na tela?
O panóptico de cada dia
nos dai hoje um ponto cego
onde possamos ser chamados pelo próprio nome.

Mais um dia ou menos um dia
O copo não está cheio, nem vazio
Outro personagem que sorri
enquanto o universo interior desaba sobre os próprios pés
Sem tempo para ter tempo que possa ser usufruído
por si e para si - longe da torre de controle
O sujeito nesses versos não somos nós





domingo, 28 de junho de 2020

SMS. n.2



Oi, tentei te ligar, mas não consegui 
completar a chamada.
Talvez eu tenha esquecido seu número,
ou tenha me poupado de mais uma ligação perdida.
Hoje te vi na tv - 
na verdade, não vi
Mudei o canal quando você apareceu
Foi como trocar de memória
fazendo desaparecer, como a imagem na tela,
a pseudo ideia de um espaço que eu nunca tive,
um tempo que nunca ocupei.
Em toda palavra escrita
há tantas outras não ditas
que ficaram engasgadas no silêncio
feito um nó na garganta que não me deixa respirar.
Uma ou duas taças de vinho
diluiram os dias mais longos
nesses versos mal escritos,
relembrando uma mensagem de texto, fria, sem vida,
como se o amor pudesse ser reduzido a 31 caracteres.
Minha língua não tem rima, não tem ginga, 
não dança com as palavras. 
Teço palavras livres - como um dia foi o amor que senti por você.



Imagem: cena do filme "Ela"(Her). Direção: Spike Jonze (2013). 

sábado, 6 de junho de 2020

Uma estação qualquer

O sábado chegou, reticente
nada diferente aconteceu
além do mesmo vazio que me vira do avesso,
expondo as entranhas até que desapareçam

Não adianta o telefone tocar,
o silêncio já disse tudo o que precisava ser dito,
colocando a contra gosto um ponto final no meio da frase 
- aquela que você não disse e jamais irá dizer - 
Tão dentro e tão fora, sem órbita
sem querer me perdi, errei o endereço,
pulei dois vagões e desci na estação errada
Tudo é outono, seco e sem cor

Preciso tanto ser, dessa afirmação,
dessa expansão de amor para além das construções perdidas
ao final dessa rua sem saída
como voltar agora?
Se tudo que viu em mim foram as sombras
os escombros do meu passado, enterrado,
feito fantasma lhe espantou para longe
do que um dia pudemos viver
Ontem tive um sonho 
nada restou depois que acordei, 
ainda sem entender, meio zonza, 
em busca de um café que desceu bem amargo
uma afirmação fria, de longe, sem olhar, sem tocar,
como se eu fosse algo do que deve se livrar
e deixamos na calçada para alguém levar
De tanto você temer o que eu mais quis esquecer 
tornou-se mais um capítulo pintado de cinza, 
outra história sem fim. 
Outra história de mim.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A-maré

La tristeza de la primavera (detalle), 1970. Giorgio De Chirico

Uma viagem a dois
 - dois náufragos - 
você salta do barco
mergulhou em si
necessidade compreensivel
essa de aprender a navegar
no próprio mar de angústia
Porém,me deixou à deriva
esperando que fosse fácil
eu simplesmente me atirar ao mar 
e voltar pra casa a nado
Como pedir para quem decidiu
partir que fique e espere
a maré baixar?
a tempestade passar?
Nenhuma dor pode ser minimizada
mas para ti não doeu me ver
como a sua âncora que te arrasta
para o fundo do mar
Eu mergulharia contigo
no mar mais agitado, nas águas mais turvas
ou nas ilhas bem aventuradas
de águas claras e serenas,
se assim me permitisse decidir
entre a terra seca e o mar,
se assim me permitisse
ouvir seu pranto, seu canto
Não fui mais que um encanto
uma história de pescador que feito peixe
morre pela boca








terça-feira, 2 de junho de 2020

Viagem ao litoral




Acordar por dentro
quando a onda ainda arrasta teu corpo
olhando para a praia a cada mergulho
como se visse um filme por segundo
e todos se confundissem
as imagens se misturam
se sobrepõem umas às outras
e tudo que você precisa
é respirar... bem fundo sem perder o fôlego 
mesmo esse ar úmido e quente
que parece vir para cutucar o que sobrou lá dentro
para alertar quem está lá dentro fazendo essa confusão
para implorar que pare

Nem cheio nem vazio
só mais um rabisco sujo de areia que vai arder
quando estiver em contato
com as memórias que se foram
feito a espuma do mar que se desfaz
quando a onda se despede e leva tudo de volta
lá para o fundo onde não há luz nem vida
de onde talvez nunca deveriam ter saído

Um coração oco feito um barco vazio
mas isso passa 
a maré muda
deixando seu rastro e notas mentais
se se perder tenha calma
ainda há amor na beira da praia
então respire novamente e nade


Fonte do vídeo: arquivo pessoal.

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Amor líquido
Quando esquenta, não ferve
Evapora



Créditos da imagem: https://bit.ly/2BsLnll

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Um poema a dois

porque amor só é amor 
quando é livre para ir
para ficar
para ser vivido quando desejado
ou ser guardado feito um poema

mesmo que nada mais reste
além da memória
do gosto e do cheiro
de ouvir a sua voz
falando o meu nome
não posso
não consigo pensar em amor
que não seja liberdade

talvez eu tenha pressa
ou viva num tempo em descompasso
querendo caber onde não há espaço
sendo que já cruzei a fronteira
feito uma clandestina, me instalei
talvez eu tenha chegado tarde
num momento inoportuno,
no calor de um desejo inacabado
talvez eu seja o seu melhor sonho, mas
que se apaga ao raiar do dia
antes de poder ouvir que eu te amo. 


terça-feira, 5 de maio de 2020

Ao Senhor das Máquinas


Sem tempo para ter tempo
Tic-tac  doce como bala de tiro ao alvo
As horas se esvaem por entre os dedos
envelheço ou pereço - nem sei
em qual estação eu desci
Num (in)cômodo ou no outro  
nada resta além do cansaço
                          da vista turva e confusa
                          do corpo teso e inflama
Efeitos colaterais do ócio criativo
 - ou ócio produtivo?! - 
O tempo como produto, como meta
Uma foto na parede do escritório 

A imediatez da vida
da necessidade de respostas
                         de números
                         de valores
sobrevive a qualquer vírus
O sistema imunológico dessa lógica delirante 
não responde a nenhum tratamento
O mundo adoeceu de tanto eu
as pessoas se rendem a qualquer way of life
                                                     uma promessa
                                                     um mito
                                                     uma glória 
que esvazia o que nos resta de humano
Não há vacina para códigos de barra
Nem máscaras que nos proteja da indiferença
Nos tornamos invisíveis
às mãos invisíveis do desenvolvimento
Já reproduzíamos obras de arte
hoje reproduzimos a criatividade
o empreender individual e seco, sem sabor
 - não é um merlot - 
o inventismo burocrático que só cabe 
nas planilhas do excel
ou nos dados do Big Data

Vigiar e punir - a gente nem percebe
uma Soma que só soma esquecimento seletivo
                                       - perdi minha dose
Entre tantas ofertas de felicidade estampadas
nas vitrines das redes sociais, dos likes 
soul grato, soul casto
esse otimismo viciante que degenera 
a potencialidade da vida, do trânsito
comum pelas vias contrárias
Na contramão,
lutamos para sobreviver a qualquer custo
Não percebemos que na realidade 
já deixamos de viver há muito tempo
quando reduzimos quem somos 
a um registro da categoria. 




Fonte da imagem: https://wifflegif.com/gifs/554517-pink-floyd-the-wall-gif

domingo, 15 de março de 2020

Casa


Natividade - Adriana Varejão, 1987

Posso ser muitas
sendo eu mesma 
          por poucas vezes 
nada pertenceu a mim
quando a porta se abriu pra rua.
Só aqui dentro eu vivo
e vibro meu ser
no meu corpo tenho o meu mundo
meu templo, meu todo múltiplo
                     eu não posso pertencer 
ao que está fora do meu corpo
O tempo preenche a matéria
                              mas feito uma folha em branco
o mundo me diz que sou (l)oca
eu digo que sou o que 
o mundo não quer ver: 
                              mesmo que sejam curvas de delicadeza 
nessa estrada o moço só vê 
um retrato em crise, que insiste
em se adaptar a uma natureza que não cabe a ninguém 
A imagem me aprisiona
                        porque não pode imprimir liberdade.