quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Re-ciclagem



Li outro dia que a liberdade não é apenas alçar voos, mas também escolher pousar. Isso me levou a pensar no quanto podemos estar nos enganando quando ou achamos que somos livres por nunca pousar em lugar nenhum ou porque ao pousarmos nos colocamos numa situação definitiva. 

A liberdade tem a ver com a capacidade que nós temos de nos posicionar frente a vida, tomando as nossas próprias decisões a partir daquilo que sentimos ou pensamos. Tem momentos que essas decisões estarão relacionadas com as iniciativas que precisamos ter frente determinadas situações, exigindo que nós nos lancemos numa nova jornada ou que aceitemos os novos desafios que nos foram propostos. Sim, a mudança nos provoca a alçar voos, deixando para trás o que não há mais a menor possibilidade de progresso, aquilo que se estagnou por algum motivo o qual talvez nunca saibamos qual é. Isso é a contingência, da qual não temos escapatória. Também haverá aqueles momentos em que precisaremos avaliar se não é a hora de "fincar os pés na terra" e permitir que as raízes se firmem num solo novo e fértil. Esses são os momentos em que nos são ofertadas oportunidades de viver novas experiências, mesmo que estejam dentro de um nicho de coisas que já não são mais novidades para nós: um novo emprego, uma nova casa, um novo amor, por exemplo. 

Tanto para alçar voos quanto para pousar é exigido de nós a coragem de sair do lugar, da zona de conforto que costumeiramente criamos na vã tentativa de evitar o sofrimento, a frustração. Desenvolvemos essa zona de conforto para disfarçar o medo que temos de realizar um novo investimento e no fim das contas repetir as mesmas sensações, as mesmas experiências que já nos machucaram. Criamos essa zona de conforto para que não fique tão evidente o quanto temos medo de recomeçar. Mas nem tudo resulta apenas da nossa falta de coragem quanto a essas questões. Há todo um sistema de coisas que trabalham contra as próprias condições de nossa existência, recusando elementos como a contingência, o devir, a temporalidade. Há uma gama de convenções, valores, regras que pretendem nos convencer de que alçamos voos em momentos específicos, geralmente de acordo com a nossa maturidade física e intelectual; e que a decisão de pousar seja onde for é algo imperativo, ou seja, que nos coloca numa condição ou posição a qual possivelmente não irá mais se alterar. É aquela velha história de que devemos almejar o "ser feliz para sempre", omitindo-se que esse "para sempre" contraditoriamente tem prazo de validade. E aí muitas vezes sacrificamos a nós mesmos e a outros que podem estar envolvidos, sentido-nos infelizes ou não realizados por nos encontrarmos num lugar em que, mesmo que ainda tenhamos a disposição em batalhar para lidar com as diferenças, para superar as dificuldades, se torna uma força que desprendemos e que infelizmente já não dão mais resultados, por vários motivos, de acordo com a situação que nos encontramos. Esse sistema de coisas não nos mostra que tem horas que o mais proveitoso é saber parar, colocar um ponto final, mesmo que seja doloroso. Mas não. Esse sistema de coisas prefere que vivamos numa bolha, onde construímos essa estabilidade com essa convicção de que "nada mais irá mudar", sem percebemos que isso é impossível, já que até quando uma situação não se altera por completo, provocando a temida mudança, ainda assim não será sempre a mesma coisa. 

Diante do exposto, percebemos que alçar voos e pousar andam juntos, desde que tenhamos a destreza de perceber que a mudança não é algo negativo, tampouco um sinal de fracasso. Só podemos pousar novamente se nos dispusermos a mudar, a querer recomeçar do zero, enfrentando novos desafios, diferenças e dificuldades. Ou seja, só podemos pousar se alçarmos voos do lugar onde estamos e que não nos agracia mais. Só podemos pousar se tivermos a coragem de abandonar a zona de conforto na qual nos encontramos, nos propondo a vivenciar o novo independentemente do que passou. Um amigo budista me disse uma vez que temos dois sentimentos básicos que costumam orientar nossas ações: o amor e o medo. Quando o medo paira sobre nós, parte de nossa vida se congela, feito uma camada de gelo sobre a correnteza de um rio durante o inverno. Deixamos que essa correnteza leve embora as oportunidades que nos aparecem - as quais podem não mais retornar - por puro receio de sofrer mais uma vez. Quando o amor paira sobre nós, ao contrário, a vida segue o fluxo desse rio. O amor é cria-atividade, o amor é inventivo, é a vontade que nos impulsiona a desfazer-se da velha roupa colorida que não nos serve mais. Evidentemente não há garantias de que ao conduzirmos nossa vida pelo amor nos livraríamos do sofrimento. Mas se nos orientarmos pelo medo obteremos essa garantia? Também não. Desse modo, resta-nos nos conhecer o suficiente para percebermos quando permitimos que o medo ou o amor sejam nossos comparsas. E isso acontece através das nossas próprias experiências de vida, levando-se em consideração tanto o que deu certo quanto aquilo que não deu certo. E, se não deu, foi porque ousamos recomeçar um dia. 



Fonte da imagem: http://pt.depositphotos.com/27568693/stock-illustration-set-of-birds-on-wires.html

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Trânsito

Como deslocar o amor
de um estacionamento vazio
se não lhe resta sequer
os carinhos do motor?

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Transfusão


Só numa alma de artista há espaço
para receber um coração poético. 

Genuinidade

Giorgio de Chirico - Ettore e Andromaca, 1917

Não me importo com
o bairro ou a rua de casa,
nem com o carro na garagem,
tampouco com o que tenho no banco
como moeda de troca.
Não me interessa 
quantos carimbos tenho 
em meu passaporte,
onde irei passar as férias,
o que farei no sábado à noite,
se ao meu lado está você.
Se tenho o seu abraço,
seu sorriso,
sua companhia
seu humor coloquial,
seu amor visceral.
Nada vale mais a pena 
que não ter pena de si 
por viver apenas o que 
pode ser vivido.
Vivo de viver você e eu
e o que nos couber.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Quando o coração palpita fraquezas


Impossível ser super-homem o tempo todo.
As vezes dói ser aquilo que tu és.
Eu sou como você, anjo rebelde.

Coração selvagem

Salvador Dali - O espectro do sex appeal, 1934.


Tem dia que os ombros não suportam as dores do mundo. A contingência não sabe brincar mesmo quando o espírito insiste em manter a inocência. Os sentimentos ficam apertadinhos dentro do peito, como se fossem explodir; o frio faz arrepiar os pelinhos do braço e o coração palpita amores que ainda não foram vividos. Tem dia que lhe pedem tempo, enquanto assiste o tempo passar e desconstruir quimeras. Um suspiro na tentativa de afugentar a sensação de sufoco. É difícil driblar um dia nublado.
Nesse mundo em que até os mais profundos sentimentos são ofertados em lojas de embutidos, tentam afogar com as mágoas do passado a esperança que ainda nutre pela presença de uma companhia que ainda não possui. Tentam lhe fazer desacreditar que o amor é simples, embora exija trabalho. Querem te provar que o romantismo se esgotou, está fora da validade; que as relações são blasé, e que acreditar nas histórias de relações duradouras corresponde à crença em contos de fada. Querem lhe fazer desistir de todos (des)encontros para que se integre num mutirão de iguais, cabeças vazias e coração louco; para que fragmente o coração em pedacinhos a serem distribuídos entre uma ou duas noites frívolas. E aí percebe que está só, por preferir estar só a ter alguém que não está disposto a conquistar nada além de um corpo sem órgãos. E lhe perguntam, sistematicamente: “como pode estar só? Como pode?” E eu respondo: “sem o manual de sobrevivência dos ascetas, dou preferência a não querer em vez de desejar o nada”.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Das coisas mais simples



Nem cheio nem vazio
porque viver é transbordamento.





Fonte da imagem: http://delineandoosdias.com.br/?p=2482


sábado, 7 de janeiro de 2017

Jardins

Gustav Klimt - A árvore da vida, 1909.

Pensei que fosse tarde
para permitir que um sentimento
tão intenso desabrochasse.
Já havia estabelecido a fronteira
entre razão e sensibilidade,
o território estava bem protegido
pela conquista de sensações as quais
durante muito tempo,
acreditei que seriam encontradas 
apenas do lado de fora.
Como pude ser tão tola
em acreditar que a felicidade 
e o amor habitariam outras moradas
que não fossem às do meu próprio ser?!
Como pude interpretar tão equivocadamente
os sinais vitais que meu próprio corpo emitia?!
Antes de refazer o meu jardim
com as mais belas formas de mim mesma,
compreendia que o amor e a felicidade, 
feito a floração de uma bromélia,
são ansiosamente aguardados
embora nem sempre aconteça. 
Variáveis como o clima, a terra,
o cuidado no plantio,
podem condicionar a possibilidade 
de ser presenteado ou não com tamanha beleza.
A flor de uma bromélia representa 
a expressividade do que ela é. 
Ora, como hei de buscar minha expressividade
num jardim que não é meu?!
Como hei de encontrar sensações que não são,
antes de tudo, semeadas dentro de mim?!

Nem o amor, tampouco a felicidade
podem ser colhidos se não forem plantados
bem aqui, no único lugar em que posso
senti-los: onde pulsa o meu sangue e meus versos.
Meu corpo, minha morada, meu jardim.
Onde deveras posso contemplar 
o nascimento e a morte das estações.
Por querer amar semeio o amor
dentro de mim;
por querer ser feliz semeio a felicidade
dentro de mim.
Assim como a beleza das bromélias
não são guardadas para a exclusividade
do meu olhar sobre elas,
o meu amor e a minha felicidade,
não se reduzem a serem cativados dentro de mim.
Podem ser partilhados em todos os momentos,
em tudo que faço e posso germinar mais amor.
Assim como uma bromélia sente a flor dentro de si,
sinto o amor e a felicidade dentro de mim,
florescendo a todo instante. 

Hoje esses sentimentos refazem
as fronteiras que antes determinei
numa fórmula tão pragmática, 
permitindo a plasticidade em detrimento
da rigidez, isto é, permitindo que esses sentimentos
transitem entre o meu jardim e o jardim de outrem.
Entre eu e você, que faz florescer em mim
a mais bela das flores sazonais. 
Daí o amor e a felicidade se tornam presença,
mas não é a presença de um visitante o qual,
após a estadia, retorna ao seu lugar de origem,
de quem hei de sentir uma imensa sensação de vazio
em virtude da falta que me faz.
Assim como tempo, amor e felicidade
se tornaram a minha matéria.
Mesmo sem você, um jardineiro inesperado,
o amor não deixa de ser cultivado
cotidianamente, preparando-se para florescer
até nas circunstâncias mais inadequadas.
Mesmo sem você, um jardineiro inesperado,
que já semeou em mim a mais singela de todas
as sementes que já pude germinar,
o amor há de florescer mesmo quando for tarde...