domingo, 12 de setembro de 2021

Estrangeiro

 Eu fugi

Eu corri léguas de distância

Meus joelhos nem aguentavam mais

Meus pés mal suportavam o peso do meu corpo

e ainda assim eu corri até perder o fôlego

Quando me dei conta 

percebi que mesmo estando tão longe

eu procurava você em outros rostos

Encontrei pelo caminho apenas reflexos

projeções sem cores do que deixara para trás

Estive em tantas cidades em que me vi 

flanando pelas ruas em sua companhia

embora tenha sido providencial 

estar apenas comigo mesma

Me perdi e me (re)encontrei tantas vezes que

nem tinha notado que havia se tornado rotina 

andar por aí me ocupando apenas de

voltar para mim mesma

Tive tanto medo

eu ainda tenho medo de conceder um espaço para ti

e partilhar contigo a minha própria alegria

É um risco que me consome as vezes 

quando me deparo com a possibilidade de que você

me jogue em mais um poço de dor

onde eu posso, talvez, sucumbir

Eu não tenho controle sobre nada 

e perambulo sobre o abismo sabendo que 

a qualquer momento eu posso cair

Mas confesso que me esforço em não precisar

lidar com a repetição de histórias e dissabores

mesmo sabendo ser em vão

Uma taça a mais de um notável estranhamento

nem é um exagero quando é emergencial

mudar de rota e dirigir por trilhas desconhecidas

Não há outra maneira de viver noutro clima 

e respirar novos ares a não ser arriscando a pele

deixando para trás o cansaço, o esgotamento

para se permitir viver noutro lugar

onde o amor é estrangeiro. 


Alexandra M. Lopes


domingo, 6 de setembro de 2020

Amores líquidos

Salvador Dali - Galatea das Esferas, 1952 

 Não dizer nada

é  mais que qualquer palavra.

Feito o som que ninguém repara

mas que mexe e embrulha a vida, 

nem sempre para presente.

O silêncio desvela o descaso,

a ausência disfarçada de compromisso que 

inunda o coração com uma alegria impessoal,

um sentir descartável, feito um trapo

no fundo de uma gaveta qualquer. 

Você realmente esteve aqui, dentro,

em algum momento? Não sei.

Você caminha em círculos e ainda assim se perde.

Senti saudade, senti falta. Só não senti medo.

Talvez, numa hora ou outra, 

eu tenha sentido um vazio porque

eu fiz muita falta para mim mesma.

Nesse descompasso por onde me guiou,

eu estive longe demais para 

perceber que não haveria nós - 

eu dancei a sós  essa canção que 

cantava uma história 

mal contada, inacabada.

De você restou apenas os cacos

de um coração despedaçado,

onde um dia coube o que eu quis que fosse amor.

Não tem amor sem entrega, 

sem partilha, sem escuta

sem lugar para dois.

Embarco num mundo que eu possa fazer parte

e expanda meu universo particular.

Me recuso a viver um afeto líquido que, 

feito a água de um rio,

contorna as pedras no caminho. 

Porém, pelo medo de desaguar no mar, 

prefere se afogar. 

Sujeito oculto

Obras de Banksy estarão em Lisboa entre junho e outubro. É mais uma  exposição não autorizada pelo artista – Observador
Banksy - street art in Boston, 2010.

Um fantoche
das mídias, das redes.
O que restou de quem somos?
Algoritimos, robôs, cifrões
Um like, mais um follow
Nada que some
Só o que consome. 

Sem rosto, sem gosto, 
em uma sala pintada de cinza, vazia.
Quem vejo na tela?
O panóptico de cada dia
nos dai hoje um ponto cego
onde possamos ser chamados pelo próprio nome.

Mais um dia ou menos um dia
O copo não está cheio, nem vazio
Outro personagem que sorri
enquanto o universo interior desaba sobre os próprios pés
Sem tempo para ter tempo que possa ser usufruído
por si e para si - longe da torre de controle
O sujeito nesses versos não somos nós





domingo, 28 de junho de 2020

SMS. n.2



Oi, tentei te ligar, mas não consegui 
completar a chamada.
Talvez eu tenha esquecido seu número,
ou tenha me poupado de mais uma ligação perdida.
Hoje te vi na tv - 
na verdade, não vi
Mudei o canal quando você apareceu
Foi como trocar de memória
fazendo desaparecer, como a imagem na tela,
a pseudo ideia de um espaço que eu nunca tive,
um tempo que nunca ocupei.
Em toda palavra escrita
há tantas outras não ditas
que ficaram engasgadas no silêncio
feito um nó na garganta que não me deixa respirar.
Uma ou duas taças de vinho
diluiram os dias mais longos
nesses versos mal escritos,
relembrando uma mensagem de texto, fria, sem vida,
como se o amor pudesse ser reduzido a 31 caracteres.
Minha língua não tem rima, não tem ginga, 
não dança com as palavras. 
Teço palavras livres - como um dia foi o amor que senti por você.



Imagem: cena do filme "Ela"(Her). Direção: Spike Jonze (2013). 

sábado, 6 de junho de 2020

Uma estação qualquer

O sábado chegou, reticente
nada diferente aconteceu
além do mesmo vazio que me vira do avesso,
expondo as entranhas até que desapareçam

Não adianta o telefone tocar,
o silêncio já disse tudo o que precisava ser dito,
colocando a contra gosto um ponto final no meio da frase 
- aquela que você não disse e jamais irá dizer - 
Tão dentro e tão fora, sem órbita
sem querer me perdi, errei o endereço,
pulei dois vagões e desci na estação errada
Tudo é outono, seco e sem cor

Preciso tanto ser, dessa afirmação,
dessa expansão de amor para além das construções perdidas
ao final dessa rua sem saída
como voltar agora?
Se tudo que viu em mim foram as sombras
os escombros do meu passado, enterrado,
feito fantasma lhe espantou para longe
do que um dia pudemos viver
Ontem tive um sonho 
nada restou depois que acordei, 
ainda sem entender, meio zonza, 
em busca de um café que desceu bem amargo
uma afirmação fria, de longe, sem olhar, sem tocar,
como se eu fosse algo do que deve se livrar
e deixamos na calçada para alguém levar
De tanto você temer o que eu mais quis esquecer 
tornou-se mais um capítulo pintado de cinza, 
outra história sem fim. 
Outra história de mim.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

A-maré

La tristeza de la primavera (detalle), 1970. Giorgio De Chirico

Uma viagem a dois
 - dois náufragos - 
você salta do barco
mergulhou em si
necessidade compreensivel
essa de aprender a navegar
no próprio mar de angústia
Porém,me deixou à deriva
esperando que fosse fácil
eu simplesmente me atirar ao mar 
e voltar pra casa a nado
Como pedir para quem decidiu
partir que fique e espere
a maré baixar?
a tempestade passar?
Nenhuma dor pode ser minimizada
mas para ti não doeu me ver
como a sua âncora que te arrasta
para o fundo do mar
Eu mergulharia contigo
no mar mais agitado, nas águas mais turvas
ou nas ilhas bem aventuradas
de águas claras e serenas,
se assim me permitisse decidir
entre a terra seca e o mar,
se assim me permitisse
ouvir seu pranto, seu canto
Não fui mais que um encanto
uma história de pescador que feito peixe
morre pela boca








terça-feira, 2 de junho de 2020

Viagem ao litoral




Acordar por dentro
quando a onda ainda arrasta teu corpo
olhando para a praia a cada mergulho
como se visse um filme por segundo
e todos se confundissem
as imagens se misturam
se sobrepõem umas às outras
e tudo que você precisa
é respirar... bem fundo sem perder o fôlego 
mesmo esse ar úmido e quente
que parece vir para cutucar o que sobrou lá dentro
para alertar quem está lá dentro fazendo essa confusão
para implorar que pare

Nem cheio nem vazio
só mais um rabisco sujo de areia que vai arder
quando estiver em contato
com as memórias que se foram
feito a espuma do mar que se desfaz
quando a onda se despede e leva tudo de volta
lá para o fundo onde não há luz nem vida
de onde talvez nunca deveriam ter saído

Um coração oco feito um barco vazio
mas isso passa 
a maré muda
deixando seu rastro e notas mentais
se se perder tenha calma
ainda há amor na beira da praia
então respire novamente e nade


Fonte do vídeo: arquivo pessoal.