quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Fala



O que encontrou em meus olhos
além do verde primavera?
O que há em mim,
além de meus olhos,
que lhe traz de volta
toda vez que parece escapar?
Entre idas e vindas
um longo parênteses onde
não cabe tudo que desejo
falar ao pé de sua orelha.
Entre idas e vindas ainda
prevalece a vontade de que fique,
sem reticências que traduz ao infinito
o que pensa quando me vê.
E o que vê?
...



Créditos da imagem: pintura de Salvador Dali - Mae West, 1934.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Para John Coltrane

Se queres ficar, não pestaneje.
Para o amor não há ensaios.
Ouça o que precisa ouvir,
daquelas notas epilépticas
que vem de dentro, que pulsam
feito sangue que corre nas veias.
O amor lhe parece Blue?
Improvise.


segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Ex mágica




Pensei numa forma mais simples
de estender-lhe meus braços
e abraçar suas dores junto com as minhas
afastando todo dissabor por trinta segundos
intermináveis entre você e eu.
Como sou ex mágica,
posso apenas escrever poesia
versos que podem, um dia,
tirar um sorriso tímido
de sua face, que ainda  revela
o desassossego de outrora,
a mordida que ainda não
cicatrizou.
Pensei numa forma mais simples
de acompanhar seus passos
ainda receosos em direção
ao acaso, mas como sou
ex mágica, resta-me apenas
seguir as pistas que podem
me levar até onde você
quiser atravessar - comigo.





Fonte da imagem: http://amoantix.com/show-de-magica/




Incógnitas



E se o sono não vem
porque a janela aberta
deixa o vento sussurrando
sobre o corpo nu
aqueles versos não ditos
guardados a sete chaves
pelo medo de perder-se
entre a razão e o desejo?

Porém,
já não estamos perdidos?
Não estamos submersos
nas águas turvas do vir a ser?

Não estamos no limiar daquela linha tênue
que traçamos para que tenhamos
a  sensação de que estamos no controle?

E quando tivemos controle?
Quando nos negamos a viver
algo para se proteger?
Quando nos acomodamos ao benfazejo
circunstancial por sabermos lidar bem
com a solidão que não mais corrói
as noites em claro?
Quando transferimos qualquer possibilidade
de amor à roda cármica do fracasso?

No fundo sempre estamos no meio
entre um território aconchegante
e o sedutor universo desconhecido
entre um abismo de novas possibilidades
e a terra firme da resignação.

Que transborde em mim (e em ti)
todo sentir poético
e versos mal acabados
toda entrelinha mal escrita
antes de sequer pensar
que seja possível uma vida em que
o amor não seja liberdade.


Fonte da imagem: http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/11/philippe-petit-dei-pessoas-imagem-de-que-nada-e-impossivel.html







domingo, 18 de dezembro de 2016

E se for...

Water the flowers -  Mark Samsonovich, 2014


Quando ela deixou de esperar
surpreendeu-se mais uma vez
com um sentimento que há
tanto tempo não mais florescia
Pensara que sua vida
se resumia nas alegrias
que poderia desfrutar
nas mais diversas formas
de amor - menos uma.
E de repente,
se encontra tomada novamente
por aquele sentimento retumbante
o qual ainda tenta resistir,
deixando-a paralisada tanto
pelo desejo de vivê-lo quanto pelo
receio de novamente se perder.

E se for outra ilusão criada
pela miopia que imperou
sobre o meu coração antes de você?

Tamanho conflito sensível
dificilmente deixa de ser pensado e
refreia a vontade visceral
de escrever-lhe cartas de amor
onde eu  possa me revelar por inteira
mostrando muito mais que
a nudez do meu corpo diante
dos seus olhos.
Metade de mim
ainda relembra o lugar de outrora
onde um sentimento antropofágico
se instalou disfarçadamente e
quase me devorou por inteira
tornando-me expectadora
daquilo que sempre acreditei que
de fato é o amor: a cumplicidade
de duas vidas distintas que se dispõem
a dividir e experimentar os sonhos possíveis.
E nesse encontro inesperado
cada um trouxe consigo
a própria bagagem de mão
repleta de mágoas as quais
há tanto esforço para se evitar
Manter os pés no chão é providencial
para a construção de qualquer história
E para recomeçar essa página,
quero deixar essa bagagem em casa
na próxima vez que eu te ver
E carregar em meus braços
apenas o que há na vida presente
mesmo que seja breve...








domingo, 27 de novembro de 2016

Fragmentos V



De tanto medo
esvaziou o verbo
calou a palavra
e decidiu se ancorar 
numa certeza
de que toda dor se repetiria
se houvesse qualquer
tentativa de sair
dessa vida inerte.
Fez desse silêncio gélido
sua rotina laboral
exercitando sistematicamente 
a repressão de todo impulso que
lhe incentivasse a 
enfrentar os dissabores passados.
Sem a máscara do medo
que lhe impede de enxergar 
algo além das sombras 
que habitam sua morada
tudo que lhe resta é a sensação nostálgica
do vento primaveril acariciando a sua face
daquele perfume cítrico que deveras
causou-lhe náuseas
e hoje relembra a saudade
de ser amado (por si e para si).
Sem a máscara 
tudo que lhe resta 
são perspectivas infundadas
sem garantias
nem finais felizes.
o mais puro e belo vir a ser
um salto no abismo 
que é viver, sem qualquer promessa
Nada além do desejo
de viver mais uma vez
o que deveras é o amor. 
Fati.


Fonte da imagem: http://carcarafx.blogspot.com.br/

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Esquadro

O contador antropomórfico - Salvador Dali, 1936

A memória pode ter cheiro e cor,  fazê-lo sentir que esteve onde deveria. E se tivesse a chance de voltar atrás, mesmo ciente do final, provavelmente faria o que fez: tentaria uma, duas, três vezes, o quanto fosse capaz de acreditar que poderia ser diferente. Isso é ser humano, lançando-se no abismo, adentrando um quarto escuro, sem saber sobre o que irá tatear. Entretanto, a memória pode servir como outra forma de investimento, propiciando a possibilidade de restaurar a si mesmo em detrimento de uma incessante auto flagelação resultante de toda frustração e (des)engano já experimentado. 

Sobre o tempo que passou não há o que fazer além de registrar no que consiste aquilo que não lhe interessa mais. Faço a ressalva providencial de que o que deve despertar o desinteresse não é pelo o que foi vivido, mas pelo o que não agrega à vida nenhum valor. São circunstâncias as quais devem repousar nos braços de Morfeu para não mais se levantar, já que não podem ser apagadas para serem reescritas com o grand finale que idealizou. 

Sobre o tempo presente resta a cria-ação, o re-começo, um novo istmo de alegria. Onde é possível desfazer as malas, rasgar as cartas desendereçadas, mudar todo o corpo de lugar. Prender-se ao passado ou ao futuro, feito um match point do vivido, desvia a visão a qual deveria enxergar com toda a clareza que a vida escorre pelos nossos dedos feito areia na ampulheta.

Sobre o tempo futuro, uma promessa que virá mas talvez não se cumpra. Um salto no abismo até para quem pretende se salvar do passado, apesar de não haver o que ser salvo: não há alma a ser condenada nem martírio a ser carregado, por pior que sejam os desacertos. No futuro não há absolutamente nada além de uma página em branco fora de esquadro. O futuro não é o tempo do reajuste, acerto de contas, da resignação. É apenas uma oportunidade de virar a página, sem deixar orelhas nas anteriores. 

Dessa maneira, essa mesma memória que por vezes tira o fôlego e as noites de sono é a que insiste em recordar o interesse inquestionável pela vida, que só pode ser sentida sem disfarces para a dor. Assim, se trata de uma grande falta de gentileza consigo mesmo quando se pretende, sem sucesso aparente, construir a vida sobre a ausência do sofrimento, fadando-se a se frustrar em todo o tempo que lhe resta. A dor é contingente, encarar essa assertiva não significa a recusa do prazer pelo viver, mas ser resiliente quanto a essa condição. Propõe-se, com isso, que a equação seja invertida: deve-se projetar no esquecimento o valor que se destina, mesmo sem querer, às dores; transfigurar a energia desprendida no ressentimento, a qual permite que a cicatriz nunca se feche. Daí se evidencia o quanto se perde atendo-se ao que não é possível contornar mais; o quanto poderia ser investido em si mesmo para que valorizasse mais o prazer de viver que a dor. É uma questão de perspectiva conceder a si o privilégio de mudar a sua vida de lugar, permanecendo no olho do furacão onde é possível permitir que os desacertos sejam destruídos e abram lugar à reinvenção de si mesmo. 

Enfim, apelo a uma habilidade típica dos escultores que talham a mais singela beleza na frieza e rigidez de uma pedra de mármore: que na tesura provocada pelas experiências frustradas seja esculpida novas formas dignificadoras da vida e do que ainda pode vir a sê-la, mesmo diante as contradições. Nada mais humano que ousar fazer de si a própria realização. 








quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Meio cheio, meio vazio

De toda palavra
(mal)dita naquele dia seco,
restou apenas a sede
que nem é minha.
A aridez desse sentimento
que hostiliza a ti mesmo
não habita meus solos férteis
onde brotam diariamente uma centelha de vida
semeada mesmo perante a cólera
Ao infortúnio alheio que tenta
me convencer da propriedade
 - típico dos corações reativos -
não hei de aceitar o convite inapropriado da culpa.
Mas se quiser ouvir
o cântico herege dos selvagens,
dos aventureiros malfalados
que desbravam o horizonte do devir,
disponho-me a recitá-lo.
Cada verso livre há de provocar
nos ouvidos menos adestrados
uma vontade inebriante:
dancemos, nus, pela paisagem abissal
a testar a energia de cada  músculo
e a coragem típica de quem não tem
o menor pudor para enfrentar
a rugosidade da epiderme existencial.
Me visto com minhas vísceras
não disfarço o que tenho na carne
vermelha, feito o sangue
que transporta o mais translúcido amor
pelas minhas veias.



terça-feira, 25 de outubro de 2016

Deveras teve apenas um minuto
para guardar a sensação daquelas mãos
afagando os cabelos atrapalhados
pela ventania na estrada
para ouvir aquela voz embriagante
sussurrando incoerências intransitivas
sentir o perfume dessa primavera seca
naquela pele ofegante.

O relógio parou.
Do tempo restou reticências.


quinta-feira, 12 de maio de 2016

Desuso


Sem tempo para ter tempo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Mexíveis e não mexíveis

Salvador Dalí - Girafa em Chamas, 1937

A memória pode fazer do seu dia uma trincheira de guerra. Se lembrar ou esquecer? Ambos podem construir ou destruir o mundo no qual se sente confortável num piscar de olhos: com uma palavra que ouviu aleatoriamente,  uma música que conseguiu captar enquanto mudava de estação no rádio. Um perfume. Um beijo que não aconteceu naquela hora.

Difícil avaliar qual dessas duas artes é mais trabalhosa de aprender. Atire a primeira pedra aquele que nunca desejou não se lembrar de um tanto de coisas que se despertam, do nada, sem o menor pudor, dentro de si mesmo. Por que simplesmente não se esquece e ponto final? Por que viver sem incômodo algum é um projeto que, desde o princípio, promete ser um fracasso. Afinal, é esse incômodo que irá, se souber ler a mensagem, demonstrar o quanto somos mal investidores quando o assunto é se lembrar ou se esquecer.

Veja bem, pode se tratar de uma seletividade, embora não seja necessariamente definir o que irá engavetar como "lembrança" ou "esquecimento". Estou falando de um outro tipo de seleção: o que fazer quando essas lembranças indesejáveis vem à tona, acompanhada de algum sentimento constrangedor. Não podem ser mudadas, evidentemente. São situações que foram esquadrinhadas no passado. Porém, é possível avaliar o que pode fazer com essas lembranças agora, no presente. Vai mergulhar num poço de dor e arrependimento - típica atitude reativa que tende a se tornar mais e mais inflamada à medida em que não consegue se desprender do que já passou - ou fazer dela um verso mal acabado da própria história, transformando-a naquilo que por experiência não deu certo. Melhor que ignorar que um fato deveras aconteceu é aprender como torná-lo algo que não seja repulsivo. Isso é esquecer. Deixo o passado em seu lugar e dou licença para o recomeço.

Se esquecer, nesse sentido, conduz para o desconhecido. É uma oportunidade de (re)construir-se, de (a)firmar-se. Não é uma borracha mágica que apaga as mazelas da vida. Tampouco garante que não haja outros tropeços. É um convite a se atrever a não fazer do passado uma cicatriz.