domingo, 7 de setembro de 2014

A primeira via

É fácil apontar o dedo para o outro
quando os próprios olhos estão de costas.
Não conseguem ver o necessário
para (se) ler cada letra desconcertada
e defeituosa. Cada linha mal escrita,
mal-dita, (in)acabada num conto de fadas.

Tão mais fácil é julgar
quando os valores são unilaterais.
Sendo a via de mão única,
todos sempre estarão na contramão
das expectativas insaciáveis
de quem é incapaz de se identificar
nos próprios juízos.

Hoje enterrei todos aqueles que
olham para trás e se dizem desapegados
do passado. Incapazes que são do amor de si,
exigem do outro o amor de si e do além.
Não permitem que a estrada se apague no retrovisor,
querem sempre voltar, repetir as mesmas querelas.
Porque assim se auto afirmam pessoas de bem:
bem vazias, comprometidas com o que não tem volta.
E sempre terão uma coleção de pretextos para lhe dizer
o quanto você deixa a desejar em tudo que faz,
ou melhor: em tudo que não faz.

Meus sentimentos àqueles que apreciam
viver na eterna desilusão de si mesmo:
não erguem o véu que mais parece
ser uma cortina de ferro.
Não veem outro caminho,
não veem nada além dos desenganos,
desencontros, desacertos - sempre
provocados por um coadjuvante qualquer.
Sem criar perspectivas,
restam a esses desiludidos
apenas os pontos de fuga.








domingo, 24 de agosto de 2014

Des-apegados

Fonte: google imagens.

Viver fora da asa.
Cordões não seguram mais
esse espírito livre.
Ainda assim, tentam  prendê-lo
numa gaiola construída
pelas ilusões alheias.
Pelos desafetos, 
a vida que não quis e hoje tem.

Um coração de passarinho
se cansa de pulsar
por um amor vampiresco.
Quando nada basta,
nada complementa,
nada alegra,
o amor vira vício.
Medo de estar só,
de ter que pensar sobre si.

Tão mais fácil é 
ter o outro para culpar
pelos próprios fracassos.
Para acusar e xingar aos quatro ventos,
ou apenas para lamentar e sentir falta
das coisas que não pode ter. 
E não terá.
Gente que não sai do lugar,
porque está tarde, está velho, está cansado.
Mudar é um verbo que mora longe demais.

Gente que teme ser gente,
reconhecer a transitoriedade das coisas,
das pessoas, dos momentos.
Gente que deseja uma vida de vitrine,
porque não suporta ser 
responsável pela própria felicidade.
Gente que pensa que uma proposta 
irrecusável de amor é 
a oferta de uma segurança sufocante
por baixo das próprias asas.

Numa teia de sedução corrosiva,
o espirito livre não há de se prender.
Ele migra, para o norte ou para o sul,
para qualquer lugar onde o amor
não lhe prenda em grilhões.










quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ella.

(Gustav Klimt - Beethoven Frieze, 1901-02)

Ella sempre teve a impressão de um estrangeiro.
Tudo fora de lugar, tudo deslocado,
como se atravessasse um furacão por dia.
Não se enxerga em nenhum canto definitivo porque
não coloca a vida dentro de um parênteses.
Fora de convenções e convencimentos,
seu lugar é no tempo: tudo muda, Ella muda,
troca o verbo, cala a palavra. Lhe custa fôlego.
Se sente sufocada, sem espaço, sem poder escapar, quando
há instantes em que as convicções alheias
açoitam suas costas. Ella insiste. Se solta mais.
Reconhece que é complicada, porque sempre
avança pelo contrário: Ella não oferece sonho.
Só pode oferecer o que é.

Lhe cobram fantasias - Ella gosta de se fantasiar.
Mas o que querem é contraproducente.
Não seduz nem o bêbado do centro da cidade.
Apenas conduz a um mundo que já se esgotou,
onde já não existe mais beleza, só cinzas moralizadoras.
Ninguém cobra autenticidade,
ninguém quer admitir que o Rei está nu.
Incrível o quanto desejam
se enganar com ilusões desnecessárias,
aquelas em que a meta ultrapassa
a precisão de se reinventar a vida a todo instante.

Cada qual enxerga aquilo que quer.
E apontam o dedo para o outro acusando-o
de não reconhecer o amor que lhe oferecem.
O Rei está nu. Todos elogiam a sua roupa pomposa.
É o que querem enxergar: uma projeção do próprio desejo, .
insistem em ver aquilo que o extrai
de qualquer responsabilidade sobre si mesmo.
Mais fácil  ler uma aventura romântica que uma tragédia.
E ninguém, além de Ella, caminha por
livre e espontânea vontade pelo desfiladeiro
da complexidade, da exaustão, da exasperação
dos mais altos sentimentos despudorados.
Mostrar-se nua ao outro que só quer
enxergá-la vestida como deveria ser e não é.
Apontem o dedo: Ella está nua, nua!

terça-feira, 24 de junho de 2014

Momento Greta Garbo


(Fonte: google imagens)

Eu quis aprender a ser minha própria companhia. Aprendi muito cedo a fazer de mim uma experiência antropológica-fisiológica, porém, tive dificuldades típicas de iniciantes. Chorei duas décadas consecutivas, senti meu corpo latejar, como se desintegrasse pouco a pouco, dando lugar a novas formas. Mas em meados de meu trigésimo terceiro aniversário, espantosamente eu me abracei e me acalmei. Num só impulso eu me acalentei. 

Ali, sentada sobre a cama desarrumada, percebi que tudo que um dia pensei em conquistar mundo afora, estava depositado bem aqui dentro. Há um universo incomensurável dentro de nós, rico em possibilidades infinitas de vida, as quais resistimos reconhecer porque exige um trabalho doloroso. Acho isso curioso: tanta  gente se dispõe a experimentar o sofrimento pelo outro, quando se aventuram nas mais diversas formas de relacionamentos, mas resistem a sofrer por si mesmo, por aquilo que está relacionado à construção de uma relação afetiva consigo mesmo. Amar o próximo nunca foi tão mais fácil que amar a si mesmo, porque para lidar com o "si mesmo" é necessário se buscar como um projeto dentro de si. Um projeto o qual é inacabado, como um quebra cabeça de mil peças sempre a completar. 

Sinto amor, tenho felicidade e alegria porque sou eu que me conquistei. Não sou realizável apenas com o "próximo"; porque hoje, no tempo presente em que a minha vida se desarrola, sou eu o meu parceiro. A primeira boa companhia, antes de mais nada, é aprender a lidar consigo mesmo. A se perceber, a se notar, a enxergar em si a beleza e o amor.

Não desfaço da importância de outras parcerias, só não projeto a ideia de realização ou felicidade na necessidade de haver um outro para confirmá-la. É preciso aprender a estar só, não viver na quimera de uma relação futura como única forma de vida possível. Estar só é possível e realizável. E assim como relações não são definitivas, a ausência de uma companhia também não. 

Vejo tanta gente sofrendo por sentir uma solidão avassaladora dentro de si, por sentir-se devorado pela ausência de alguém, e perdem tanto tempo se projetando para esse alguém que não notam o quanto estão longe de si mesmos... Percebe? Estar só não é o mesmo que ser solitário. Vejo uma oportunidade. É um momento de integração de si consigo mesmo. Saber traçar os próprios caminhos sem a dependência afetiva,
admitindo que há várias perspectivas em jogo, tudo pode mudar de uma hora para outra - nada é definitivo.

Não quero morrer pensando no que eu não fiz ou não tive. Quero viver o que for possível viver. Amar o que for possível amar - seja a mim mesma, o outro, ou ambos. Abrir novos caminhos quando for possível fazê-lo. Só não desejo dar concessão à amargura, por sofrer da falta, ver somente a dor e os fracassos, ou a ausência. Nem irei me submeter a qualquer forma de amor apenas por pura adequação, para satisfazer expectativas alheias. Quero viver, antes de tudo, essa beleza que já habita dentro de mim. E depois... Sabe-se lá o que pode vir a ser.



segunda-feira, 23 de junho de 2014

Voz.

Não sou de fazer cerimônia.
Se tenho algo a dizer, digo. E pronto.
O problema é que a maioria dos ouvidos
são apurados para ouvir apenas o que querem.
Temem o desagrado, o feio, o profano.
Desejam evitar a todo custo aquilo que, lá no fundo,
já ecoa dentro de si, mas que insistentemente
teimam em conceder algum crédito.
Temem se enganar.
Mas já o fazem ao ignorar a si mesmo, a sua própria voz.

Minha palavra vem de dentro. Não dos dicionários.
Vem do corpo, das entranhas mais abissais.
Vem do caos interior que admito alimentar
as configurações inconstantes que dou à vida.
Não sofro de vertigem existencial.
Meus labirintos funcionam muito bem.
Ouço cada (im)pulso sussurrar
oscilações de sentimentos e formas,
sem ocupar-se somente com o agradável.
Evito dicotomias lancinantes.

Talvez eu meça palavras,
o que não significa que eu busque adequação.
Viver é essencialmente admitir a incongruência.
Sentir o sem sentido e o mal-dito,
enxergar além de uma palavra de desafeto.
Quero dizer a discordância,
desfazer tratados de paz.
Só assim posso mudar de pele, de nome,
trocar a senha, virar a página.
E começar de novo.



terça-feira, 10 de junho de 2014

O mundo (não é) um moinho


Ainda é cedo, amor,
para que seus sonhos vire pó .

Ouça-me bem,
por que estar resolvida se
em cada esquina pode
criar uma nova vida?

Preste atenção.
A hora da partida é anunciada por dentro.
O tempo não é pouco
para quem não teme
traçar novos rumos de ser.

Se está à beira do abismo,
trate de traçar a própria ponte.
Só herdará o cinismo
quando cavar, com os próprios pés,
uma ilusão avessa ao amor
à vida.

AML

(De minha Cartola,
para o samba-enredo de quem
é o que é.)



domingo, 1 de junho de 2014

Epifanias





Tudo que não invento, refaço.
Manoel de Barros me ensina a ser mestre de obras:
livre arquitetura de ser - eu.

Fragmentos IV

Escher - Convexas e côncavas, 1955 (litografia).

Sou desassossego.
Uma turbulência em pleno (re)pouso.
Nada por aqui pode ser permanente,
tampouco ignorar a invenção.




quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Não mais "se"



Antes que a melancolia me devore viro pássaro.

A vida presente é o bastante.

Por trás da palavra há um abismo de carne e osso.

Meus verbos escorrem sangue.

Amores etílicos evaporam.

Desilusões endurecem a epiderme.

Amanhã é uma expectativa que tende a nos foder.

"Eu te amo" é uma metáfora.

Salto no abismo sem paraquedas.

Prefiro pimenta a qualquer tempero falso.

Não há movimento retilíneo uniforme quando amo.

O outro não pode me conceder a felicidade que não possuo.

Dentro de mim o vento sopra dissonâncias.

Não acredito em promessas.

Reticências me levam a pensar dissabores.

Perco a paciência com a ruminação intelectual.

Não acredito em coisas que tenham a pretensão de serem definitivas.

Adoro queimar a língua com café quente.

Digo não a qualquer um que não queira amar e insiste em viver de amor.

Me entrego por inteira até quando é meio dia.

Não partilho com alguém o que não não tenho cultivado dentro do meu corpo.

Quero ser artista para criar minha alegria e não ter a fraqueza de ascetas.

Um minuto gira sentimentos incomensuráveis.

Crio meu universo particular com versos livres.

Adoro magenta.

Não guardo nem meia palavra que precisa ser publicada ao vento.

Disfarço o tecido rugoso que constitui a contradição da vida com poesia.

Saber o que quer não evita nem pequenos nem grandes fracassos.

Permito-me desistir do sono quando as madrugadas são anônimas.

Estado de inquietude é tão necessário ao poeta quanto oxigênio à vida.

Prefiro o sentido trágico da vida a um otimismo sufocante.

A pior solidão é quando a própria companhia é insuficiente.

Nenhum amor é vão.


AML