segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Esquadro

O contador antropomórfico - Salvador Dali, 1936

A memória pode ter cheiro e cor,  fazê-lo sentir que esteve onde deveria. E se tivesse a chance de voltar atrás, mesmo ciente do final, provavelmente faria o que fez: tentaria uma, duas, três vezes, o quanto fosse capaz de acreditar que poderia ser diferente. Isso é ser humano, lançando-se no abismo, adentrando um quarto escuro, sem saber sobre o que irá tatear. Entretanto, a memória pode servir como outra forma de investimento, propiciando a possibilidade de restaurar a si mesmo em detrimento de uma incessante auto flagelação resultante de toda frustração e (des)engano já experimentado. 

Sobre o tempo que passou não há o que fazer além de registrar no que consiste aquilo que não lhe interessa mais. Faço a ressalva providencial de que o que deve despertar o desinteresse não é pelo o que foi vivido, mas pelo o que não agrega à vida nenhum valor. São circunstâncias as quais devem repousar nos braços de Morfeu para não mais se levantar, já que não podem ser apagadas para serem reescritas com o grand finale que idealizou. 

Sobre o tempo presente resta a cria-ação, o re-começo, um novo istmo de alegria. Onde é possível desfazer as malas, rasgar as cartas desendereçadas, mudar todo o corpo de lugar. Prender-se ao passado ou ao futuro, feito um match point do vivido, desvia a visão a qual deveria enxergar com toda a clareza que a vida escorre pelos nossos dedos feito areia na ampulheta.

Sobre o tempo futuro, uma promessa que virá mas talvez não se cumpra. Um salto no abismo até para quem pretende se salvar do passado, apesar de não haver o que ser salvo: não há alma a ser condenada nem martírio a ser carregado, por pior que sejam os desacertos. No futuro não há absolutamente nada além de uma página em branco fora de esquadro. O futuro não é o tempo do reajuste, acerto de contas, da resignação. É apenas uma oportunidade de virar a página, sem deixar orelhas nas anteriores. 

Dessa maneira, essa mesma memória que por vezes tira o fôlego e as noites de sono é a que insiste em recordar o interesse inquestionável pela vida, que só pode ser sentida sem disfarces para a dor. Assim, se trata de uma grande falta de gentileza consigo mesmo quando se pretende, sem sucesso aparente, construir a vida sobre a ausência do sofrimento, fadando-se a se frustrar em todo o tempo que lhe resta. A dor é contingente, encarar essa assertiva não significa a recusa do prazer pelo viver, mas ser resiliente quanto a essa condição. Propõe-se, com isso, que a equação seja invertida: deve-se projetar no esquecimento o valor que se destina, mesmo sem querer, às dores; transfigurar a energia desprendida no ressentimento, a qual permite que a cicatriz nunca se feche. Daí se evidencia o quanto se perde atendo-se ao que não é possível contornar mais; o quanto poderia ser investido em si mesmo para que valorizasse mais o prazer de viver que a dor. É uma questão de perspectiva conceder a si o privilégio de mudar a sua vida de lugar, permanecendo no olho do furacão onde é possível permitir que os desacertos sejam destruídos e abram lugar à reinvenção de si mesmo. 

Enfim, apelo a uma habilidade típica dos escultores que talham a mais singela beleza na frieza e rigidez de uma pedra de mármore: que na tesura provocada pelas experiências frustradas seja esculpida novas formas dignificadoras da vida e do que ainda pode vir a sê-la, mesmo diante as contradições. Nada mais humano que ousar fazer de si a própria realização. 








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