segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Coração selvagem

Salvador Dali - O espectro do sex appeal, 1934.


Tem dia que os ombros não suportam as dores do mundo. A contingência não sabe brincar mesmo quando o espírito insiste em manter a inocência. Os sentimentos ficam apertadinhos dentro do peito, como se fossem explodir; o frio faz arrepiar os pelinhos do braço e o coração palpita amores que ainda não foram vividos. Tem dia que lhe pedem tempo, enquanto assiste o tempo passar e desconstruir quimeras. Um suspiro na tentativa de afugentar a sensação de sufoco. É difícil driblar um dia nublado.
Nesse mundo em que até os mais profundos sentimentos são ofertados em lojas de embutidos, tentam afogar com as mágoas do passado a esperança que ainda nutre pela presença de uma companhia que ainda não possui. Tentam lhe fazer desacreditar que o amor é simples, embora exija trabalho. Querem te provar que o romantismo se esgotou, está fora da validade; que as relações são blasé, e que acreditar nas histórias de relações duradouras corresponde à crença em contos de fada. Querem lhe fazer desistir de todos (des)encontros para que se integre num mutirão de iguais, cabeças vazias e coração louco; para que fragmente o coração em pedacinhos a serem distribuídos entre uma ou duas noites frívolas. E aí percebe que está só, por preferir estar só a ter alguém que não está disposto a conquistar nada além de um corpo sem órgãos. E lhe perguntam, sistematicamente: “como pode estar só? Como pode?” E eu respondo: “sem o manual de sobrevivência dos ascetas, dou preferência a não querer em vez de desejar o nada”.

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