quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ella.

(Gustav Klimt - Beethoven Frieze, 1901-02)

Ella sempre teve a impressão de um estrangeiro.
Tudo fora de lugar, tudo deslocado,
como se atravessasse um furacão por dia.
Não se enxerga em nenhum canto definitivo porque
não coloca a vida dentro de um parênteses.
Fora de convenções e convencimentos,
seu lugar é no tempo: tudo muda, Ella muda,
troca o verbo, cala a palavra. Lhe custa fôlego.
Se sente sufocada, sem espaço, sem poder escapar, quando
há instantes em que as convicções alheias
açoitam suas costas. Ella insiste. Se solta mais.
Reconhece que é complicada, porque sempre
avança pelo contrário: Ella não oferece sonho.
Só pode oferecer o que é.

Lhe cobram fantasias - Ella gosta de se fantasiar.
Mas o que querem é contraproducente.
Não seduz nem o bêbado do centro da cidade.
Apenas conduz a um mundo que já se esgotou,
onde já não existe mais beleza, só cinzas moralizadoras.
Ninguém cobra autenticidade,
ninguém quer admitir que o Rei está nu.
Incrível o quanto desejam
se enganar com ilusões desnecessárias,
aquelas em que a meta ultrapassa
a precisão de se reinventar a vida a todo instante.

Cada qual enxerga aquilo que quer.
E apontam o dedo para o outro acusando-o
de não reconhecer o amor que lhe oferecem.
O Rei está nu. Todos elogiam a sua roupa pomposa.
É o que querem enxergar: uma projeção do próprio desejo, .
insistem em ver aquilo que o extrai
de qualquer responsabilidade sobre si mesmo.
Mais fácil  ler uma aventura romântica que uma tragédia.
E ninguém, além de Ella, caminha por
livre e espontânea vontade pelo desfiladeiro
da complexidade, da exaustão, da exasperação
dos mais altos sentimentos despudorados.
Mostrar-se nua ao outro que só quer
enxergá-la vestida como deveria ser e não é.
Apontem o dedo: Ella está nua, nua!

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