terça-feira, 15 de maio de 2012

Perxistência

(John Everett Millais - Ofélia, 1851-1852)

Existir dói. Sem pessimismos, leitor. Não há bajuladores da morte por aqui. Isso - sentir que existir dói -  não deixa de ser um caráter afirmativo da vida; não deixa de estilizá-la como desejável, alegre, embriagante. Nem sempre a dor pressagia infelicidade: aproximação esta um tanto rasteira e descompromissada com os próprios afetos. A dor também enuncia que há algo aqui dentro, pulsando, que não é evitado: é sentido, burilando a mente e o corpo simultaneamente - pois são um só. Entretanto, estamos inseridos num mundo cujo formato é da satisfação imediata, do prazer e do gozo, da felicidade concreta (e não como promessa) no agora, o que torna contraditório admitir a sensação de desconforto gerada pela dor. "Desconforto" é palavra de ordem para poucos; nem todo mundo se ambienta confortavelmente no desconforto de uma terceira margem, e vive ensimesmado, esperando que o tecido rugoso da vida se torne poroso, cheio de atalhos e mais atalhos para que a dor não se torne pungente. Atalhos, será? Ou pontos de fuga?

Em ambos os casos, o que está em jogo é a satisfação, que nos acomoda a alguma fórmula de bem estar. No primeiro, a instabilidade e finitude ainda é, de certa forma, admitida: trata-se de projetos efêmeros de felicidade, sempre propensos a serem "substituídos" por um novo atalho que impede, com mais "eficácia" (?!) de ser incomodado pela dor. O vazio - causa-mor da dor -  sempre é preenchido com novas empreitadas e investimentos fugazes de uma noite, um drink (a mais), uma conquista objetiva (mérito, poder aquisitivo, status), etc. A dor é solapada porque aparentemente "não há falta de nada". Mas a nossa própria natureza é de incompletude e tão logo um projeto imediatista fracassa, tão logo somos avisados desta nossa condição. E tão logo alcançamos a meta, mudamos novamente o alvo de direção... É assim. A dor é adiada, apenas. Procrastinar é um hábito que também tem hora marcada. Afinal, atalhos, meu caro, podem conduzir à ruas sem saída, endereços falsos e repleto de salteadores.

Da mesma forma se dá com pontos de fuga, mas com uma pequena ressalva - talvez uma espécie de pretensão acolhedora, que nos acomoda na inércia do "não pensar sobre isso", nos colocando como coadjuvante da vida que a preenche com fórmulas prontas, equações binárias cujo x é, sempre, igual a y. E ponto. Fica o dito pelo não dito; e o vazio é ocupado com o que supostamente é esperado de cada um: ter isso, ser aquilo - um trabalho ideal, encontrar o parceiro(a) ideal, com quem teremos um amor ideal, uma vida ideal, uma felicidade ideal, uma velhice ideal. "Ideal"??? Percebe? Nada provisório, tudo certo, definido, bem acabado pelos engenheiros do Condicionado. Os pontos de fuga projetam uma felicidade que parece estar aqui, pertinho de nós, nas coisas cotidianas que todos devem almejar, mas na verdade está projetando um plano absoluto de felicidade que discorre acima da vida: cadê a instabilidade, a finitude? O que garante que toda esta arquitetura faraônica da felicidade gere felicidade? Nada. Mas este nada não é sobrepujado quando o tempo é tão ocupado com projetos e mais projetos... de felicidade...

Veja bem: não se trata de desejar a dor; nem de ignorá-la completamente. É um ouvir de dentro, as ruminâncias do corpo que fala. Toda dissonância desemboca numa beleza de vida, que dói a cada suspiro, com o tempo que passa apenas prometendo mais um dia: tempo é cria-dor de outro dia, outra casa, outro amor. Um espaço - vago - que interroga e dilacera sem machucar. Doa a quem doer, passa; há sempre um sopro (de vida) que disfarça esta incomensurabilidade latejante que nos aperta e nos solta o tempo todo. Nem atalhos, nem pontos de fuga: apenas um disfarce, uma máscara, um personagem no coro dissonante. E disfarçar não é vontade de se emancipar do incômodo, um querer se livrar, se libertar, re-mediar. É dinamizar as rotas, driblar os salteadores e caminhar sobre o abismo que é ser cria-dor de si mesmo.

AML

Nenhum comentário: