sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Falar de prosa: conto que fala de amor.

Escrever é um verbo intransitivo.

Eu tento sempre mudar a temática, o ritmo, a melodia do texto; tento quebrar a harmonia e construir algo novo, mas não dá. Tenho um tema que seja ou não o objeto principal da escrita, sempre aparece de um jeitinho ou de outro: às vezes sorrateiramente, ou avexado entre linhas; sutil ou inflamado. Sim, o amor é meu tema-mor. 

Não sou provinciana, portanto, minha escrita também não é: o meu tema é grande e não poderia ser diferente: falando do meu tema não escapa que eu fale de mim e de você, leitor. Mesmo quando falo do tempo, de potencialização da vontade pela vida mesma, da cria-atividade artística de se (re)construir a todo instante, estou enunciando o amor - e, ao mesmo tempo, amando. Não há como partilhar algo que não sou, que não crio ou renovo: palavras também são imagens transfiguradoras do absurdo que é existir... Eu até poderia falar de coisas fantásticas e inusitadas - como Rubião - mas, não. Até quando tento falar do fantástico, falo de amor.

Outro dia, eu conheci um menino que relinchava. Parecia estar muito entediado e, por isso, relinchava. Não sei se os cavalos relincham quando estão entediados, mas esta era definitivamente a situação desta pessoa. Uma conhecida o atravessou, ele sorriu para ela, o sol até se abriu nesta hora (era uma tarde quente de uma quinta feira indecisa, o céu estava claro, embora parecesse que ia chover). Porém, logo em seguida, voltou a relinchar. O tempo fechou novamente... Daí, pensei: "nossa, esta estória é uma boa oportunidade para eu escrever um conto!" E nada. Comecei a escrita, mas logo o assunto se desviou: ao invés de explorar o fato inusitado do menino relinchar, apenas vinha em minha mente o por quê daquela tristeza tão grande que eu notara em sua expressão fraca, tão abissal que o levava a  relinchar... Deveras, não senti nele o sopro da vida, mas um estado quase animalesco de mal estar... Está vendo, leitor? Não sai outra coisa: eu conto, mas me atenho a esta prosa muito típica do interior...

Levei este problema ao meu analista, pois pensei que era frustrante demais escrever prosa ou versos, e ainda por cima com um tema tão presente. E pior: que esta frustração advinha de alguma brincadeira de mau gosto do meu inconsciente. Daí o doutor me disse: "filha, o seu problema (que não é, de fato, um problema)  é esta sensibilidade que aflora por todos os seus poros, fazendo com que você veja a vida como versos em construção. Ah, se todos os meus pacientes sofressem deste mesmo mal..." Sim, meu analista tem tanto de Fernando Pessoa quanto tem de Freud: "você se lê como versos que são escritos e apagados, sempre em (re)criação." Neste dia, saí do consultório muito feliz, convencida que também sou artista - falo de amor em prosa e versos, vivo o amor numa tela em branco onde pinto as cores que preenchem meus versos... Crio e recrio, desfaço, pinto outra coisa, deixo a palavra no ar, secando a tinta.

Daí, pergunto: por que ser outro se sou tão intensamente maior sendo EU? E volto novamente na estória do menino que relinchava. Ele se sentia ofendido em ser o que era, ou melhor, parecia que estava ofendendo o mundo por ser quem é. Estava num palácio de espelhos cuja auto imagem refletida era distorcida. Pois é. Eu não queria falar, mas não tem jeito: ele não via dentro de si o amor, esperando-o sempre vir do espectador, do lado de fora. Para se amar, ele precisava de uma "aprovação" do mundo, como se tivesse que existir alguém cristão o suficiente para lhe dizer: "eu te compreendo, te aceito do jeito que é e amo-te." Pobrezinho, vai continuar relinchando por muito tempo... E repetirá todos os dias o mesmo episódio: vai sorrir para a menina conhecida, terá um minuto de gozo que logo será desperdiçado no tempo em que perde esperando que ela olhe para trás e veja quem é...

2 comentários:

Ísis disse...

A licença poética é sempre mais urgente que a licença do analista. Recorra à sua sensibilidade e continue explorando, de forma criativa, este tema que, nós, mulheres, adoramos. Catarse coletiva!

Alexandra M. Lopes disse...

Obrigada, Ísis! Mas confesso que gostaria de ser menos monotemática. Todavia, eu desconfio, ao mesmo tempo, que falando de amor eu enuncio todo o resto.