domingo, 1 de maio de 2011

O espelho de Narciso.



Por que escrever?

O que me dispõe a escrever?

Liberdade. Aqui não há máscaras metafísicas de perfeição. Sou eu. No corpo. Em fluxo. Mas a escrita, para mim, não é movida somente pela paixão e contradição que sou, mas também pelo desafio. Imaginas tu o que me desafia? 

O mudo da medida. Esse mundo ilusório da perfeição, da permanência, da felicidade ressentida. Ter que medir, amar como um moralista, que só enxerga o ser nos sonhos de ventura. Isso me desafia porque sou excesso, sim, pura vontade de viver cada boa fortuna, cada desentendimento, cada deslize, cada beijo roubado. Sim, sim, sim!!! Escrevo porque a vida explode dentro de mim, um amor que precisa sair e se expressar como amor que diz sim: sou impulso que quer se expressar como criação. Mas o mundo da medida quer que eu interprete a santa quando sou a profanação do que é sacro...

Vaca profana do querer: não sou pura, nem prática -  sou criação de morte e vida que o mundo prende numa Forma. Foi necessário uma (re)descoberta do tempo perdido (menção a Proust) para eu entender por que os gênios vivem em uma lâmpada: eles sim são luz, iluminare. Mas o mundo quer que sejamos santos. Não há espaço para o gênio. O mundo da permanência não suporta sua força excessiva, é ofuscado pela alegria de viver sempre em perspectiva de renovar-se, criar-se, ser outro. O mundo quer que sejamos santos. E hipócritas. Estou num mundo da supremacia do entendimento, mas que não consegue compreender-me: eu mudo de pele. Eu posso e aceito viver na aparência ao invés da ilusão. Assim eu resisto, não me rendo à castidade do impenetrável.

Mas não é fácil resistir: quase deixei-me levar pela má disposição afetiva que a estabilidade e segurança de ser santa oferece. A ilusão, como lobo, se disfarça em pele de cordeiro. É difícil, assim, não dizer amém à vontade de bem querer com a qual o lobo tenta nos abocanhar: ele sabe que criar(se) também é doar. Deveras, quase fui santa quando fui acolhida pela boa ventura do Amor (In)condicional, aninhei-me no feitiço da Forma de Mulher Ideal. E quase afoguei-me... Como Narciso, encantei-me com a imagem de Beleza e Perfeição: pura fachada do (des)encanto. Porém, eu não cedi,  percebi que o reflexo se desmancha através do toque mais sutil na superfície do espelho d'água e emergi. Ao contrário de Narciso, eu não busquei encontrar tal imagem cativa. Não sucumbi à fantasia. Estou aqui. Inteira. 

Entretanto, para os moralistas eu fracassei. Eles não entendem que ganhar(se) envolve uma perda. A economia que fazem para poupar-se do sofrimento turva a visão que possuem do tempo: são morais, coerentes, bem articulados - mas ressentidos, vazios, incompletos. Escravos de uma promessa, uma recompensa que não permite criar a felicidade do presente. Sou  um erro para os moralistas: porque eu estou livre da má consciência, não me culpo (e a ninguém) pelo passado e não vivo às custas da certeza do futuro. Não sofro recaídas quando tentam me seduzir com suas idolatrias às ideias abstratas, numa perspectiva dos sarcófagos que mumificam o Ser. Os moralistas me veem como uma objeção à maturidade do sagrado, um desafio (novo?) à redenção pacificadora dos ânimos e paixões exaltadas: sou apenas a mulher profana, a ovelha que fugiu do rebanho. A mulher que preferiu gozar em viver com prazer pela vida, ao invés de refugiar-se na ficção eterna de uma alegria póstuma confinada nos jardins regozijantes (???) do Paraíso.

Sabes tu como os moralistas nos enganam, nos enfeitiçam com fórmulas narcísicas da (pseudo) felicidade? Quando nos possibilita o conforto da mesmice, de não ter mais que lidar com o inesperado, com o acaso;  domesticam a criação de novidades, pois assim acreditam que nos tornamos melhores. Qualquer um perde o tesão pela vida quando o sexo torna-se a expressão do entendimento "do homem que sou", isto é, quando exige que seja uma força racional ao invés de expressão da criação. Qualquer um perde o tesão pelo gozo da existência quando não enxerga na vida (e no sexo - o ágon desejoso entre opostos) uma novidade, uma surpresa que intensifica o ato de criar (se). 

Viver como um santo é viver um amor medíocre, que nunca se renova, que se apaixonou pela satisfação com a estabilidade que um relacionamento "sério" oferece: torna desnecessário postular desafios, novos empreendimentos, novos jogos ardis que não sacralizam nada. Tornar o amor "sério" sufoca, vai ao encontro do que não podemos encontrar, pois está no além do amor. O amor é desejo de uma vida profana da pura contradição, do fluxo do devir que destroi e se renova a cada momento. Amar - nesse sentido humano - não é para santos, é tarefa para a caridade profana, que se joga no corpo, com o corpo, pelo corpo.

E se não enxerga a mim como uma mulher profana, não me reconhecestes como humana, gente que tem forma de gente. Não me tocou. Não me quis. Desejou a santa, o permanente, a segurança que a materialização do Ideal oferece em contrapartida às surpresas do acaso. Entretanto, como santa sou um fracasso na cama....Fatalmente um dia isso se tornaria um entrave... Velar o corpo com a pureza que santifica o amor o torna feito de mármore: rígido, pálido, sem cor. Só posso amar quando sinto que o amor é plasticidade, é ir-se, é criar. Quando amar é surpresa que não se prosta no presente, no já conquistado (será?), é sempre possibilidade que não se esgota no tempo. Só posso amar quando não há embaraço nas impressões...

Só quem se presta ao profano pode amar pelo instinto do devir da vida como pura transformação. Quem é profano não ama a soberba que ostenta a conservação do amor, pois deseja vê-lo renascer a cada momento... Os moralistas condenam a alegria do profano porque estes verdadeiros amantes da vida não tornam o amor "sério", mas inocente: como criança que não tem noção do perigo que corre, do que pode encontrar no fundo do lago, eles simplesmente se atiram...  E todo amor sempre é o primeiro que suspira e inspira o viver... inesperadamente, amor.

(Imagem: Narciso, pintura de Jorge Duarte, 1986) 

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